Chão Arejado
R$ 99,00
Peso | 1 g |
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Dimensões | 21 × 14 × 2 cm |
Prefácio
A poesia brasileira contemporânea é surpreendente. Em sua complexa elasticidade, é manipulada pelo poeta, através do sistema de escrita, de modo a ganhar contorno único. Sem dúvidas, é um corpo estranho. Apesar disso, a poesia brasileira contemporânea é ubíqua. Pode ser lida, muitas vezes, nos muros das metrópoles como também nas páginas de livros que não aceitam mais o incômodo silêncio das estantes ou o repugnante lençol de poeira de bibliotecas não visitadas. Por isso mesmo, atrelado ao conceito de kafkiano, este livro se lança no mundo de horrores sem perplexidade. O poeta, metamorfoseado em bichos, esgueira-se e adentra uma misteriosa floresta de palavras. Em quatro mãos, a atmosfera do livro, traçada desde o verbo até a imagem, faz o leitor ir além, insinua ambiguidades e oferece nada menos que uma fusão de traços que faz emergir uma nova realidade.
É assim que Chão arejado se apresenta. Escrito pelo poeta Marcos Torres e ilustrado pelo artista plástico Uillian Novaes, este livro, já no primeiro poema, “retrato anômalo”, faz o leitor se dar conta de que está diante de uma terrível paisagem, composta, em primeiro plano, por palavras arrancadas do corpo do poeta que se desfaz no mundo e, em segundo plano, pela pictórica e sádica autodestruição humana.
É interessante observar, e as ilustrações de Uillian Novaes permitem perceber, que as forças da natureza não são mecânicas, os animais representados alongam-se numa interação humana nada receptiva. Isto não é um zoológico, é o que se pode inferir. Afinal, os bichos falam, versam e, acima de tudo, a lógica da contemplação é destroçada por caninos raivosos.
Muitas vezes vorazes, os bichos parecem uma alegoria da cultura, que por sua vez, só se manifesta no próprio homem. Por essa via de exploração, o poeta Marcos Torres parece abrir também os caminhos desta floresta e revela ao leitor possibilidades e limites.
Nesse sentido, parece produzir um ensaio antropológico, com poesia zoológica. A viagem por diferentes geografias condensadas no ímpeto humano, faz lembrar o renomado livro Cultura: um conceito antropológico, do grande antropólogo brasileiro Roque Laraia, que afirmou certa vez:
As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura.¹
Em tom ácido, próprio dos poemas de Marcos Torres, podemos ler neste livro, entre outros tantos poemas viscerais, o poema “balbúrdia”, uma espécie de síntese da interação do homem com o homem e do homem com a natureza. Ressoa aqui a frase do filósofo inglês Thomas Hobbes: “O homem é o lobo do homem.” Embora, por uma questão de civilidade, se espere do homem o cumprimento do contrato social para o bem comum, a autopreservação parece conduzir a uma ordem social asfixiante e aniquiladora. É preciso desbravar a floresta de sentidos. A cada página, o poeta se move como um bicho que desvenda o mundo e suas armadilhas, mostra-se e é também absorvido pelos rotos da Terra.
Com as poesias infiltradas em solos híbridos, rompem-se as linhas imaginárias inventadas pelo homem. Atravessando todos os riscos, o poeta-bicho peregrina entre dias e noites com sua poesia que parece fábula. Na sucessão de imagens e versos, o leitor é instigado a produzir analogias silvestres. Parasitas invisíveis são descamuflados. A dureza de existir em um mundo inescrupulosamente violento, quase invencível, parece indicar ao leitor o sábio caminho da temperança. Parece. Pois os caminhos são incertos.
Pelo verbo e pela imagem, tanto Marcos Torres quanto Uillian Novaes parecem unir forças criativas para fissurar o mundo vítreo, que se quer em eterno espetáculo de horrores. Talvez, por isso, verse o poeta “as minhas gargalhadas são como estilhaços de vidro.” Talvez, por isso, o artista plástico tenha aqui esticado seus traços até retorcer o que for possível.
Este prefácio é, na verdade, uma trilha simples que convida o leitor a caminhar pela complexa floresta misteriosa, de Chão arejado.
Evanilton Gonçalves
É soteropolitano. Atualmente, é aluno do Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (PPGLinC / UFBA), na linha História da Cultura Escrita no Brasil (HISCULTE). Formado em Letras Vernáculas (UFBA), possui habilitação em Licenciatura e Bacharelado. Desenvolve investigações científicas sobre práticas de letramento vernaculares e tem como objeto de pesquisa o grafite e os grafiteiros de Salvador. Apresenta-se enquanto leitor das mais diversas Literaturas. Na tentativa de entender o mundo, lê os muros e os livros.
¹ LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. 24ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p.24.